Poucas experiências são tão dolorosas quanto perder uma gestação. Quando isso acontece mais de uma vez, é natural buscar respostas — e uma das explicações mais comuns oferecidas é a possibilidade de uma trombofilia.
Mas afinal: qual é a real relação entre trombofilias e perdas gestacionais? E mais importante: vale a pena investigar ou tratar com heparina e aspirina?
O que são trombofilias?
Trombofilia é uma tendência aumentada à formação de coágulos.
- Hereditárias (genéticas): mutação do fator V Leiden, mutação da protrombina G20210A, deficiência de proteína C, proteína S ou antitrombina.
- Adquiridas: principalmente a síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAF ou APS), uma condição autoimune associada a abortamentos e complicações de placenta.
A ligação entre trombofilia e perdas gestacionais
A teoria é que, em mulheres com trombofilia, poderiam ocorrer microtromboses na placenta, prejudicando a nutrição e oxigenação do bebê.
Isso parece lógico — mas quando os cientistas testaram na prática, os resultados foram diferentes do esperado.
O que dizem os estudos
SPIN Trial (2010)
Mulheres com abortos de repetição foram tratadas com heparina de baixo peso molecular (HBPM) + aspirina ou apenas observação com acompanhamento intensivo.
➡ Resultado: não houve diferença nas taxas de perda gestacional entre os grupos.
Meta-análise (2016, Skeith et al.)
Analisando 8 ensaios clínicos, concluiu-se que HBPM não aumenta a chance de nascido vivo em mulheres com trombofilia hereditária.
ALIFE2 Trial (2023, The Lancet)
Maior estudo já feito: 326 mulheres com abortos de repetição e trombofilia hereditária foram randomizadas para HBPM ou cuidados habituais.
➡ Resultado: a taxa de nascidos vivos foi praticamente idêntica nos dois grupos (72% vs 71%).
➡ Conclusão: não se deve usar heparina para tratar perdas recorrentes em mulheres com trombofilia hereditária, nem rastrear trombofilias rotineiramente.
A exceção: a Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide (SAF)
Aqui está o ponto mais importante: a SAF é diferente das trombofilias hereditárias.
Trata-se de uma doença autoimune adquirida, na qual anticorpos (anticardiolipina, anti-β2 glicoproteína I, anticoagulante lúpico) atacam proteínas ligadas a fosfolipídios.
Isso causa:
- Maior risco de trombose (venosa ou arterial).
Complicações obstétricas, incluindo abortos recorrentes, perdas no segundo/terceiro trimestre, restrição de crescimento fetal e pré-eclâmpsia grave.

Diagnóstico
É feito pela combinação de critérios clínicos (abortamentos recorrentes, perdas após 10 semanas, parto prematuro por insuficiência placentária, trombose) e critérios laboratoriais (anticorpos persistentes em duas dosagens, com pelo menos 12 semanas de intervalo).
Tratamento
Aqui, sim, existe evidência:
- Aspirina em baixa dose antes da concepção.
- Heparina de baixo peso molecular a partir do teste positivo.
Essa combinação aumenta significativamente as taxas de nascidos vivos em mulheres com SAF e RPL, sendo a recomendação de sociedades como ESHRE e ACOG.
Ou seja: enquanto a trombofilia hereditária não se beneficia de anticoagulação preventiva, na SAF o tratamento muda a história da gestação.
O que dizem as diretrizes (ESHRE 2022)
- Não recomendar rastreamento rotineiro para trombofilias hereditárias em casos de aborto de repetição.
- Recomendar investigação para SAF após duas perdas.
- Heparina + aspirina apenas para SAF comprovada.
- Não usar heparina/aspirina em RPL inexplicado.
O que isso significa para quem passa por infertilidade ou perdas
É compreensível querer fazer todos os exames possíveis — especialmente quando não há uma causa aparente.
Mas os dados mostram que:
- Na maioria das mulheres, trombofilias hereditárias não explicam os abortos.
- Anticoagulação empírica não aumenta as chances de sucesso e pode trazer riscos.
- A SAF é a grande exceção, e precisa ser investigada e tratada adequadamente.
Um olhar humano
Se você passou por abortamentos, é natural buscar uma explicação concreta.
Mas a medicina baseada em evidências mostra outra realidade:
- Não é culpa sua.
- Não é porque você não usou heparina ou aspirina que a gestação não evoluiu.
- E mesmo sem tratamento específico, a maioria das mulheres com perdas recorrentes consegue ter um bebê no futuro.
O papel da ciência é separar o que faz sentido do que realmente funciona.
Conclusão
- Heparina/aspirina não ajudam em trombofilias hereditárias.
- Heparina/aspirina salvam gestações em SAF.
- RPL deve ser acompanhado com investigação criteriosa e acolhimento, evitando intervenções sem benefício comprovado.



